
Setembro Amarelo: quando viver se torna raro
No Brasil, a cada cem jovens, três escolhem partir antes da hora.
Os dados da Fiocruz, da OMS, da Lancet, não são apenas números frios: são gritos silenciosos, são perguntas que não chegam a ser formuladas. Como chegamos até aqui, num mundo que se diz conectado, mas que tantas vezes nos deixa à deriva?
Aproximadamente 50% dos transtornos mentais começam antes dos 14 anos. É na puberdade, justamente no momento em que a vida pulsa mais intensamente, que ela também pode se despedaçar.
O adolescente está numa travessia perigosa: precisa deixar de ser criança, mas ainda não é adulto. É nesse intervalo (entre a potência e a impotência) que tantas vezes a dor se instala.
Podemos pensar o suicídio de duas formas. Há quem nunca tenha recebido, de fato, uma inscrição profunda da pulsão de vida. Uma marca melancólica atravessa sua história desde o início. O nascer já foi mais peso que bênção, mais obrigação que milagre. A energia não circula, porque algo se quebrou cedo: uma mãe deprimida, uma violência, um avô alcoolista, uma família incapaz de oferecer a liga simbólica que sustenta o desejo. O terreno da vida, em vez de fértil, se fez árido.
E há outra possibilidade: viver estava em curso, até que a seta do trágico atravessou o caminho. Um trauma, um acontecimento sem elaboração, uma ferida sem curativo. E feridas não cuidadas cicatrizam mal, inflamam, apodrecem em silêncio. Aqui não houve a costura simbólica, o “anjo da guarda” que pudesse sustentar a dor até que ela se transformasse em palavra.
Esses dois caminhos conduzem a um ponto comum: a dificuldade de permanecer. Mas se é verdade que a vida pode se perder cedo, também é verdade que, ao longo dela, recebemos muitas chances de refazer essa ligação primeira.
O problema é que nem sempre sabemos como e, sobretudo, quando se é jovem, faltam recursos, faltam palavras, falta amparo.
Por isso é tão importante falar. É preciso romper o silêncio e oferecer presença, modelos identificatórios, vínculos reais. O adolescente olha para o mundo e procura referências para se tornar adulto. Mas o que encontra? Muitas vezes, não vê ninguém próximo a sustentar esse lugar. Em vez disso, o que aparece são figuras onipotentes, os super-heróis digitais, os corpos perfeitos do Olimpo contemporâneo, inalcançáveis. E diante dessa comparação, o jovem se sente cada vez mais impotente.
É nesse vácuo que precisamos entrar. Ser professor, ser tio, ser amigo, ser vizinho: todos podemos, em algum momento, ocupar essa função de “anjo da guarda”. É menos sobre salvar alguém, mais sobre sustentar a presença. Estender a mão, convidar para a vida.
Quando estive no Japão, vi como esse fenômeno se repete em outro registro. Uma cultura marcada pela exigência extrema, pela disciplina e pela repressão afetiva.
O resultado: taxas altíssimas de suicídio entre crianças e adolescentes. É a fórmula trágica da ultra-idealização somada ao silêncio dos afetos: jovens sufocados entre o dever e a ausência de espaço para respirar.
No Brasil, o cenário é outro, mas a raiz é semelhante: falta lugar para a palavra, falta espaço para o afeto, falta presença simbólica que sustenta as fragilidades.
Falar de suicídio é, portanto, falar da vida. É recusar o tabu. É insistir que viver, apesar de tudo, ainda é da ordem do raro. Porque cada um de nós é fruto de um acaso milagroso, uma improbabilidade cósmica que nos trouxe até aqui. Não há segunda chance, não há outro jogo. É esta vida.
E talvez seja justamente isso que precisamos aprender a dizer uns aos outros com urgência e ternura: viver é bom.
Com carinho,
Maria Homem
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